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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Tico-tico sem fubá

Nos anos 1940, o balé tentou incorporar elementos tipicamente nacionais à erudita arte russa...

Mais do que dançar, o Brasil precisa aprender a amar o balé. E, para isso, o público tem que se identificar com essa arte. É hora de ver representados os índios, negros e caboclos no palco, em temáticas genuinamente nacionais.

Este era o espírito do país nos anos 1940, quando o balé, já firmado por aqui, encontrava terreno fértil para sua difusão, e o nacionalismo atingia seu auge sob o Estado Novo de Getulio Vargas (1937-1945). Estava em curso uma espécie de fusão entre a arte erudita e a arte popular. Nessa experimentação, chegou-se a ver o chorinho “Tico-tico no fubá”, de Zequinha de Abreu (1885-1935), dançado com sapatilhas de ponta pela primeira-bailarina do Theatro Municipal, Madeleine Rosay (1924-1996). E não foi um fato isolado: a bailarina Eros Volúsia (1914-2005) criou outra coreografia para a mesma música, apresentando-a nos espetáculos que fazia no Cassino Atlântico, em Copacabana. As duas chegaram a disputar a primazia da adaptação daquela canção popular para a dança clássica.

Eros Volúsia tinha a seu favor o fato de já investir havia muito tempo nesse tipo de trabalho, mostrando nos palcos do Rio danças típicas de outras regiões, como o frevo, o maracatu e o caboclinho de Pernambuco. Incansável pesquisadora de ritmos e danças nativos, ela desenvolveu uma percepção própria do que seria o “bailado brasileiro”.

A consolidação do balé no país ocorria desde o início do século. A partir da inauguração do Theatro Municipal (1909), diversas companhias estrangeiras passaram a se apresentar no Rio de Janeiro, como os Ballets Russes de Diaghilev, em 1913. Serge Diaghilev (1872-1929) foi um dos maiores diretores e produtores de balé do mundo, responsável pela revelação de grandes nomes da dança no Ocidente, como Vaslav Nijinski (1890-1950) e Anna Pavlova (1881-1931). Cinco anos depois, foi a vez de a própria Pavlova apresentar-se com sua companhia. Uma de suas bailarinas, Maria Olenewa (1896-1965), acabou se estabelecendo por aqui e foi responsável pela criação da primeira escola oficial de balé do país, a Escola de Bailados do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1927, hoje Escola Estadual de Dança Maria Olenewa, e pelo surgimento do corpo de baile desse teatro, em 1936.

Nas décadas seguintes, grupos como os Ballets Russes de Monte Carlo, o American Ballet e, especialmente, o Original Ballet Russe, que fez três grandes temporadas no Rio (1942, 1944 e 1946), encantaram o público carioca com obras famosas – entre elas, “O lago dos cisnes”, “Coppélia”, “Les sylphides”, “Petrouschka” e “Os presságios”. Em comum, essas companhias tinham o fato de serem herdeiras do padrão não só empresarial, mas sobretudo artístico, adotado por Diaghilev.

O intercâmbio provocou um crescente interesse pela arte do balé no Rio de Janeiro, e, sem dúvida, o padrão russo de dança cênica era o modelo a ser seguido. Por outro lado, o regime autoritário de Getulio Vargas, instaurado em 1937, investia fortemente na valorização de temas nacionais, política que influenciava também as linguagens artísticas. O corpo, em cena, abrasileirava-se, representando de forma estilizada figuras da cultura nacional, como o índio, o negro e o caboclo. Cabia à arte identificada como “erudita”, o balé, “traduzir” com seu refinamento as danças e figuras “populares”, para que elas pudessem ser apresentadas em palcos considerados nobres, como o do Theatro Municipal.

As iniciativas de “abrasileirar” o balé viveram um período de grande efervescência. Criavam-se espetáculos com temáticas, cenários, figurinos, músicas e, claro, bailarinos brasileiros. Mas sob o comando de estrangeiros, como Eugenia Feodorova (1925-2007), Tatiana Leskova (1922), Vaslav Veltchek (1896-1967) e Yuco Lindberg (1906-1948), entre outros.

O resultado dessa dupla influência era um balé mestiço, em que a técnica européia misturava-se com as danças e os temas populares nacionais. O espetáculo “Yara” foi um bom exemplo disso. Encenado em 1946 pelo Original Ballet Russe em sua última temporada no Rio de Janeiro, mesclava lendas amazônicas com a seca do Nordeste. A produção era caprichada: a partir de um argumento original do poeta Guilherme de Almeida (1890-1969), a coreografia e o libreto foram criados pelo tcheco Ivo Vania Psota (1908-1952) e a música, composta por Francisco Mignone (1897-1986). O balé contava ainda com cenários e figurinos assinados por Cândido Portinari (1903-1962). Embora encenado pela respeitada companhia russa, o espetáculo não foi uma unanimidade. Na revista O Cruzeiro, por exemplo, o crítico Accioly Neto considerou o tema impróprio “por mostrar as mazelas do país”, e a coreografia, “inexpressiva e pouco original”.

Antes de “Yara”, a cidade já vinha assistindo a outras iniciativas que incorporavam temas e danças brasileiros ao balé. Em 1939, na primeira temporada oficial do corpo de baile do Theatro Municipal, foi montado o espetáculo “Maracatu de Chico Rei”, inspirado nas histórias referentes à construção da Igreja do Rosário, a igreja dos pretos, em Vila Rica. O argumento original de Mário de Andrade foi coreografado por Maria Olenewa. Alguns anos depois, em 1943, foi a vez de os temas nordestinos invadirem o Municipal, como no espetáculo “Uma Festa na Roça”, musicado pelo paraibano José Siqueira e coreografado por Vaslav Veltchek. Apesar de algumas ressalvas em relação à coreografia, ambos foram bem recebidos pela crítica, que apontou a riqueza e a importância da temática nacional para os espetáculos de dança.

A popularização do balé era tema recorrente na imprensa especializada. O crítico e jornalista de dança Jaques Corseuil (1913-2000) escreveu várias reportagens sobre o assunto, nas quais defendia a necessidade de se realizarem políticas e ações culturais voltadas para essa arte. Tratava-se de aproveitar a contribuição trazida pela presença dos bailarinos estrangeiros no Rio de Janeiro, que, além de dançar, coreografavam e ministravam aulas aos bailarinos brasileiros. Em um de seus textos mais incisivos, publicado na revista Brasil Musical em novembro de 1944, o jornalista descreve o amplo apoio que a dança recebia em países como a Inglaterra, os Estados Unidos e a Argentina, lamentando que o mesmo não ocorresse no Brasil. Como exemplo, cita a tentativa do artista plástico Sansão Castello Branco (1920-1956) de montar uma companhia: a Pantomima Ballet. Segundo o crítico, aquele seria um “verdadeiro representante do ‘Ballet Brasileiro’”, pois, embora coreografado pelo bailarino polonês Yurek Shabelevski (1910-1993), o grupo era formado exclusivamente por brasileiros. Não privilegiar iniciativas assim, no seu entender, só prejudicava nossa dança, já que “nacionalismo [seria] aproveitar os que estão aqui para nosso benefício artístico. (...) Temos agora tantos aqui – e o que se faz? Nada”.

Dois anos depois, Jaques Corseuil trataria de entrar em ação, ele próprio, unindo-se a Sansão Castello Branco para fundar o Ballet da Juventude. Em seus dez anos de existência, a companhia teve várias formações e contou com diferentes diretores, mas sem abrir mão do objetivo de formar bailarinos brasileiros. Inicialmente patrocinado pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e pela Federação Atlética de Estudantes (FAE), fez sua primeira apresentação em dezembro de 1945, por ocasião das comemorações de fim de ano dessas entidades, percorrendo depois, em 1946, várias cidades mineiras e paulistas – sempre nos períodos de folga dos bailarinos no Theatro Municipal.

A iniciativa do Ballet da Juventude sinaliza uma mudança de atitude em relação a como deveria ser o balé feito no Brasil. Terminada a guerra, findo o Estado Novo, o ideal nacionalista começava a perder espaço. O que realmente importava agora não eram tanto os temas retratados, mas sim a qualidade dos profissionais. A companhia de Corseuil privilegiava exatamente isso: a formação de jovens bailarinos brasileiros.

De qualquer forma, aquele primeiro objetivo – o de fazer o Brasil apreciar a arte do balé – virou realidade. Além disso, nas décadas seguintes, a dança difundiu-se no país, obtendo grande avanço no que diz respeito à qualidade dos nossos profissionais.

Creditos:
Beatriz Cerbino é professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do livro Nina Verchinina: um pensamento em movimento (Funarte/Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 2001).

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